Nos dias da minha angústia eu
entreguei a Deus todos os meus sentimentos. Passei novamente por Peniel, e tive
de confrontar novamente meus demônios. São como sombras dos meus próprios
desejos, silenciosos e astutos, matam lentamente o espírito enquanto engordam a
carne. As sombras crescem conforme os desejos são cultivados, e quem é que rega
essa erva daninha que cresce na alma? Oh Senhor, eu mesmo é quem o faço, e
ninguém além de mim é culpado. Nem como culpados considero meus inimigos,
livres estão de toda culpa, a eles imputo o meu perdão, pois o mal que me mata
é o que eu mesmo cultivo, pois fora do meu coração nada pode me atingir,
enquanto minha vida estiver guardada no seu Monte, pois quem pode achar meu
nome escondido no meio da sua Luz, esta que dissipa as trevas e cega meus
inimigos?
Nada tenho a reclamar de ti
Senhor, nem no pior dia da minha vida, onde ainda tenho vida para lutar, onde
ainda tenho fôlego para me levantar. De tantas bênçãos me encheste desde o meu
berço, e para onde olho só vejo as suas maravilhas. Os meus estão fartos, me cobrem
de amor, seu vigor parece não tem fim, e os dias de suas vidas parecem
alongados de mar a mar. Minha saúde não me abandona, e o pão na minha mesa
nunca faltou ou tardou a chegar. Não tive pergunta que de ti não tivesse
resposta, e nunca tive lágrimas que por ti não foram enxugadas. Nunca faltou
nem mesmo para os necessitados que a mim vieram, a sua parte sempre esteve nos
meus bolsos, e nunca se desviou das suas mãos.
E porque a angústia me domina?
Porque a sua Presença e suas Maravilhas é que geram a minha angústia? Porque
estou em trevas, e sua Luz fere meus olhos. Suas obras são testemunhas contra
mim, suas bênçãos me condenam sem direito a quaisquer recursos. Não posso
levantar minha voz para clamar, o Senhor não merece meus murmúrios. Minhas
lamentações são como blasfêmia. Sua misericórdia expõe minha vergonha, e sua
bondade é como espelho que exibe a sujeira da minha face. Quem me dera fosse
como Jó, que justo foi incomodado pelo mal, e tinha sua justiça e piedade como
testemunhas. Injusto desde os pés ao último fio de cabelo eu sou, e a
benignidade e misericórdia de Deus depõe contra mim.
Minha palavra não vale uma moeda,
meus inimigos ridicularizam minha pronunciação. Levei varadas de amigos e
parentes, sem poder contestar, pois minhas palavras se tornaram para eles como
palavras de crianças. Meus olhos só fitam o chão, e mesmo para esse eu fecho os
olhos de tamanha vergonha. Minhas promessas são vazias, minha boca é mentirosa.
Como posso falar de ti? Como posso pronunciar o seu Nome? Antes de envergonhar
o meu Deus, fecho a minha boca para toda profecia, pois se esta passa pela
minha língua ela me extingue, e me consome como papel lançado ao fogo. O seu
Nome que sempre foi leve como brisa refrescante, se tornou impetuoso como tempestade,
e grande demais para minha boca. Todos os seus títulos se tornaram pesados
demais para a minha língua. Não posso dizer o Deus que sirvo, pois me tornaria
herege por causa das minhas ações, a mim mesmo me julgaria e me condenaria, e
com minhas próprias mãos me lançaria na prisão. Seria mais justo como ateu, e
menos ímpio se me declarasse pagão.
Encurralado por amigos e inimigos, recorri
a ti em minha defesa, sem destruir a minha boca com seu Nome, sem pesar na
minha língua os seus títulos, pois minhas palavras só me serviam de condenação.
Pronunciei que somente de ti viria meu livramento, mas tudo que tive fui um
período de mais tribulações e angústias. A comida se tornou como hóspede mal
vindo nas minhas entranhas, a água se tornou cheia de terra que cortava minha
garganta. A sua Presença me acusava, e, no entanto somente o Senhor estava ao
meu lado.
Mas ainda assim a esperança
brilha a cada Sol, e me cobre como mãe amorosa a cada anoitecer. Como pode não
ter esperança o mendigo que dorme no chão da praça, e vê passar todos os dias
seu amigo que agora é Rei? Talvez ele não se sinta digno de ser atendido, mas
jamais deixará de lançar seu olhar ao Rei. Como não pode ele ter esperança, de
que seu amigo o note, e tenha misericórdia da sua situação? Tomei coragem, e me
coloquei como pedinte incômodo, batendo na porta do meu amigo que agora é Rei.
Dia e noite eu bato e grito, e ninguém me expulsa da sua porta. Onde estão os
guardas, onde estão os soldados? Na sua porta morrerei chamando, entregarei a
ti meu último grito, meu último suspiro, à sua porta morrerei como pedinte
incômodo. Minhas palavras findaram, coloquei um selo em minha boca. Nada mais
tenho a dizer em minha defesa.
E o Senhor me inspirou: minhas
palavras são belas e honestas, e não se achou falsa piedade nelas, e palavras
assim não passam despercebidas aos ouvidos do Senhor. Não sele a sua boca, não
dê fim às suas palavras. A água é maior que o copo que a carrega, seja ele de
ouro, seja ele de madeira. O copo não mata a sede, mas a água que ele carrega.
O copo sem a água não mata a sede, mas a água não precisa do copo, e pode ser
bebida nas mãos, ou diretamente na fonte, pela boca. Não se julga a água pelo
copo, e não se julga a Palavra pela boca que a pronuncia. Pois a Palavra do
Senhor é livre como a água e o vento, desvia dos obstáculos, evapora, chove
novamente, passa da planta ao animal, da carne do animal ao homem, volta ao
solo quando o homem deita na morte, é absorvida pelas plantas, e sai novamente
ao ar pelas plantas, e chega onde deve chegar. Refresca o justo como brisa,
entra leve pelas narinas das crianças, pesa nos soberbos como ar em um pulmão
destruído, vem como tempestade e furacão no Dia da Justiça. Tem forma de gota
ou a grandeza do mar, é doce para o inocente e salgada para o impiedoso.
A Palavra do Senhor me aliviou, e
minha esperança não me abandonou. Sei que os meus estão guardados Nele, e o
escárnio dos meus inimigos me dão força. As acusações dos meus inimigos se
tornaram testemunhas a meu favor, minha dor e minha angústia se tornaram meu
refrigério. A tristeza agora me fortalece como alimento revigorante. Junto
testemunhas nas repreensões dos que me amam, acumulo provas a meu favor na
disciplina do Senhor. Pelas minhas feridas sairão todos que me contaminam, a
falta de chuva secou a erva que crescia na minha alma. A Luz do Sol destruiu as
sombras dos meus desejos, a falta de recursos me impediu de cultivá-los.
Louvado seja o Senhor por todos
os séculos que vieram, e que virão a ser. Glorificado seja seu Nome para todo o
Sempre. Bendito o seu Ungido e Rei, que não deixou os soldados e guardas me
retirarem da sua Porta, e nem esperou o meu último suspiro para vir em meu
socorro. Que nunca ignorou o meu olhar, mas que deixou que todo o meu mal fosse
expulso de mim pelo meu clamor e súplicas. Não tenho outra garantia se não a sua Palavra na boca do Senhor Jesus, e a minha fé. Sua sabedoria me fez ficar calado de
temor e admiração, e me condenaria a um hospício eterno se eu dissesse que não
há Deus. Amém.
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