E o escravo disse: para onde vai?
E o outro escravo respondeu: vou fugir, vou ser
livre.
E o escravo disse: não pode fazer isso. Vai acabar
sendo morto. Nosso lugar agora é aqui.
E começou um diálogo entre os dois escravos:
- Você nasceu com esses olhos?
- Sim nasci. Eles servem para enxergar, para ver as
maravilhas do mundo. Mas só tenho visto sofrimento.
- Você nasceu com essa boca?
- Sim nasci. Ela serve para me alimentar, e para
saborear os alimentos. Mas só tenho sentido gosto do fel.
- Você nasceu com essas orelhas?
Sim nasci. Elas servem para ouvir o canto dos
pássaros, as risadas dos meus filhos, a aproximação do perigo. Mas só tenho
ouvido choros.
- Você nasceu para morrer?
- Claro que sim, todos nós vamos morrer um dia,
todos nós nascemos para morrer.
- Pois é meu amigo. Eu nasci para ser livre, e
nasci para morrer. Mas não nasci com essas correntes.
O cão em toda a sua vida enterra os ossos, come,
bebe, se reproduz, brinca e morre. Ele não tem ambição do que não conhece, e
não pode lamentar o que não fez. Saciado ele desce para o leito da morte, e se
lhe dessem mais vinte anos, nenhum acréscimo teria. O mesmo sucede a todos os animais, que
foram criados para morrer, mas isso não sucede ao homem.
Seus olhos podem contemplar maravilhosas obras da
natureza, e nunca se saciarão de apreciar o sorriso da sua amada. Seu nariz
pode sentir o cheiro do azedo, e te salvar de beber um veneno, e nunca se
saciará de sentir o perfume das rosas. Sua língua saboreia o alimento, e em
seus cento e vinte anos de vida, ela jamais provará todos os sabores de todas
as delícias. Se vivesse cento e cinqüenta anos, não poderia aprender a tocar
todos os instrumentos da Terra. Não cantaria todas as canções de amor para sua
esposa. Nem se vivesse duzentos anos, teria tempo para aprender todas as
línguas do mundo. Se vivesse trezentos anos, ainda não poderia conhecer toda a
ciência do corpo humano. E mesmo se vivesse mil anos, não poderia conhecer toda
a ciência do Universo, e seus bilhões de estrelas e mistérios. Se o vigor da
sua juventude não lhe fugisse, dançaria todas as noites com as damas do baile,
e jamais se saciaria de beijar sua namorada. Visitaria os lugares frios para
ver a neve, e não se cansaria de nadas nos rios e praias do mundo. E onde
estaria a ansiedade, a pressa, a depressão, a rotina e a monotonia? Ora, não
sabe que são filhas da morte, e da consciência da morte, e não da vida, e muito
menos da consciência da Vida Eterna?
A morte vem e mantém o equilíbrio entre os animais, que não têm consciência para manter o próprio equilíbrio. Igualmente, aguça
a ambição dos homens, traz à humanidade o medo do amanhã, e os faz ajuntar para
hoje mais do que precisa o seu corpo, mesmo que para isso seja tirado do seu
próximo. Pois, com o medo da morte, como saberá se conseguirá alimento amanhã? Assim,
homem domina sobre o homem, e sobre todos domina a morte.
Sem Deus, a morte é necessária, e vem como um
feitor, e sob o pulso do seu chicote caminha a humanidade. Ela mantém o
equilíbrio e a ordem, estimulando o homem a lutar pela vida, a evoluir para
viver, a criar e inventar para superar seus inimigos. A boa vida é escassa no
Reino da Morte, e a disputa por ela é intensa, e é essa a máquina que gira o
mundo dos homens e dos animais.
O feitor vem e chicoteia o escravo para produzir
trabalho. O tempo é curto, mas a produção tem que ser farta, pois a morte torna
incerto o dia de amanhã, e quem garantirá a boa vida depois de amanhã? Junta o
senhor tudo que pode, pois a morte vem sem avisar. O feitor torna curto o
período de descanso do escravo, e cada alimento é uma iguaria para ele, pois
até estrume a fome pode temperar. O curto período de descanso se torna prazer,
e isso busca o escravo todos os dias. Porque o tempo é curto, e a morte vem sem
avisar. O trabalho se torna monótono, cansativo, angustiante, porque o escravo
vive para alcançar o tempo de descanso. Mas o tempo de descanso é sempre mais
curto que o período de trabalho, e mesmo se o feitor lhe desse uma hora de
trabalho por dez dias de descanso, ainda se angustiaria na hora de trabalho,
pois vive para alcançar o tempo de descanso, pois a morte pode vir a qualquer
momento. A morte também torna o descanso em monotonia, e quando em excesso, em
rotina, porque se sente que está desperdiçando tempo, pois a morte chega sem
avisar.
A morte define o tempo para brincar, e para começar
a namorar, e o tempo de trabalhar, de virar homem, de constituir família e de
se preparar para a sua chegada. Seu corpo envelhece, enquanto a mente continua
ávida dos prazeres da juventude.
A mente jamais entenderá esses mistérios. Por que
tantas maravilhas para meus olhos contemplarem, se seus dias são tão curtos?
Por que tantas delícias para minha boca provar, se seus dias são tão curtos? Os
animais foram poupados dessa agonia, e não sabem que estão vivos, e nem sabem
que vão morrer. Mas ao homem foi imputado um castigo, o de ver a vida passar,
de ver suas mãos envelhecerem no corpo da jovem, que é a vida. A ele foi dado o
castigo de sentir seus braços perderem a força enquanto segura seus netinhos.
Foi dada ao homem uma fome do que ele não pode ter. O homem vive como um
pássaro na gaiola, como uma serpente que deseja voar, mas rasteja. É condenado
a aceitar correntes que não nasceram em seus braços.
No Reino da Morte, os bem aventurados são os que
sofrem e os que choram, pois para esses o leito do esquecimento trará a paz, e
o fim do seu sofrimento. Mas para os felizes e fartos de boa vida, o leito do
esquecimento trará angústia e saudade enquanto se aproxima.
Mas tanto o que sofre, quanto o farto de boa vida,
estarão juntos no leito do esquecimento, e fartura e lágrimas serão como monte
e vale nivelados. Os mortos prematuros, e os fartos de dias, serão como monte e
vale nivelados. O rico e o pobre, serão como monte e vale nivelados. Os vivos é
que dirão: esse morreu bem, esse teve uma boa vida. Mas esses logo estarão
também deitados no leito do esquecimento, e então quem se lembrará deles?
Se não há Deus, de que adianta uma vida longa, se
não poderei me lembrar dela? Do que adianta meus filhos se lembrarem de mim, se
logo estarão comigo no esquecimento? Quem se lembrará do justo, e quem punirá o
injusto? Sem Deus, do que me adianta ajudar o necessitado, se estaremos juntos
no esquecimento? Quem se lembrará de nós? E quem poderá dizer: ele foi um
grande homem? Este que diz, não estará logo comigo no esquecimento? Sem Deus,
do que me adianta sobreviver à doença, se logo me deitarei no esquecimento? Que
proveito terei das minhas conquistas no leito do esquecimento? Do que me
salvará minha sabedoria no leito do esquecimento? Se hoje, eu me deitar no
leito da morte, meus filhos irão lamentar, mas porque me preocupar com seu
choro, se logo estarão comigo no leito do esquecimento? Lá, não se
lembrarão mais do seu choro e da sua dor. Sem Deus, do que me adianta
sobreviver à doença? Meus filhos se alegrarão, mas em breve tornarão a chorar.
E não estaremos todos juntos no leito do esquecimento? Sem Deus, do que adianta
cada livro que o homem coloca na estante da vida? Pois a própria estante da
vida se deitará no leito do esquecimento, quando o Universo se for, e quando o
Sol consumir o conhecimento da humanidade.
Se não houvesse Deus, não me adiantaria continuar,
não me adiantaria levantar amanhã. Pobre do homem que vive sem Deus. É como o
escravo da lavoura, que trabalha para outro comer, que trabalha para outro
morar, que trabalha para outro festejar. O homem que vive sem Deus festeja o descanso
que o feitor lhe dá, e trabalha dia e noite para alcançar o descanso, que em
momentos já passou, e ele torna novamente para a lavoura, ávido do descanso,
que novamente passará como uma brisa, e ele tornará novamente para a lavoura,
até o dia da morte.
Mas eu não nasci com correntes, e eu não nasci para
morrer. Meus olhos foram feitos para ver as belezas da Criação, e minha boca
para provar as delícias da Terra. Minha mente continua ávida dos prazeres da
juventude, porque ela não sabe morrer, porque ela não foi feita para morrer, e
porque ela não vai morrer.
Deus vive em mim. Deus está dentro de mim. Não
trabalho mais pelo dia de descanso, mas vivo todo dia, o dia do descanso do
Senhor, todo dia é dia de descanso, e nunca mais me torno para a lavoura, pois
essa é a Vida Eterna, o conhecimento de Deus e de Jesus Cristo, que faz de todo
dia um dia de descanso. Não há mais lavoura, não há mais trabalho, mas todo dia
é sábado do Senhor.
O dia mais angustiante da minha vida é sábado chuvoso. E o dia mais feliz é sábado de verão. O dia fatigante é um sábado frio, e o dia de festa é um sábado ensolarado. Vem a chuva, e vem a tempestade, vem o Sol e vem as nuvens, vem o calor e vem o frio, caem as folhas, e nascem os frutos, nunca deixa de ser sábado, nunca vem o dia da lavoura, nunca vem o dia do trabalho, não há mais dores de parto e nem espinhos na terra, pois todo dia é sábado do Senhor.
Que o Espírito o ensine.